Os anos longos
sobre a escrita de "O porto"
2015
Comecei a escrever O Porto em 2011 e passei quase quatro anos às voltas com esse livro, descobrindo a cada vez uma forma nova de conhecê-lo. Sempre que pensava que estava pronto, percebia que ele exigia de mim mais tempo, e que era preciso escutá-lo e para isso esquecer a pressa. A escrita desse livro foi – e ainda é, de certa forma – um exercício de paciência, porque cada uma dessas cem páginas foi reescrita à exaustão até o momento em que eu reconhecia que elas cabiam em seu lugar, que elas estavam satisfeitas com sua forma e tamanho, que elas agradeciam em silêncio pelo fato de que respeitei seu tempo demorado até que se encontrassem. Era preciso esquecer os desejos imediatos para escrever esse livro, que eu fui entendendo o que era e o que queria ser aos poucos, alternando o texto do caderno para a tela, da tela para o caderno, recopiando as mesmas palavras um monte de vezes, e assistindo as letras se desenharem nas páginas. O Porto é, para mim, o livro que me ensinou que escrever é deixar de lado a ansiedade que se inflama, abdicar pelo menos por um momento da quantidade de estímulos que recebemos ao longo do dia: aquietar-se, aquietar-se e respirar, para escutar o que se diz no subterrâneo, com a voz baixinha, quase inaudível. Afinar os ouvidos no meio da cidade cheia de ruídos para localizar os caminhos que fazem os sons invisíveis das palavras que querem ser escritas. O que mais devo ao Porto é esse gesto de abaixar a cabeça e deixar, deixar acontecer, e permitir que a escrita se faça disso, nem que sejam necessários dias e dias para concluir cinco linhas.
Levei isso para a minha vida toda, enquanto escrevia O Porto e até hoje: dar o tempo ao tempo. Dar o tempo ao tempo quer dizer, eu acho: entregar de graça aquilo que recebi desde o momento em que cheguei aqui – toma de volta essa força que eu ganhei. Entregar um presente para esse monstro que arrasta, essa quimera que leva, devolver a essa criatura exatamente aquilo que ela me entregou: pega aqui o tempo que você me deu. É a cada vez um desafio dos meus preferidos abrir espaço para esse outro ritmo possível que a escrita demanda, num mundo cheio de urgências e de coisas que duram pouco todo dia toda hora.
Terminei O Porto dia 31 de dezembro de 2014: percebi na época que não poderia acabar mais um ano sem ter enfim acabado esse livro. Comecei 2015 com o livro então impresso e encadernado, de repente pronto depois de ter me seguido como um amigo imaginário durante esses anos em que mudei tanto também por causa dele. Era o momento para que ele não fosse mais meu e pudesse ser do mundo: foi por isso que janeiro e fevereiro deste ano foram meses em que compartilhei finalmente o livro com outras pessoas, e passei a enviá-lo para editoras. Em meados de fevereiro recebi a resposta da Iluminuras: queriam publicar O Porto. Foi uma alegria saber que o livro podia finalmente ir embora. Mas, na primeira conversa com o Samuel, o que ele me disse foi: vamos lançar o livro, mas só no ano que vem. Você vai ter que esperar 2016 para que o livro seja editado com a devida atenção; o ano é de crise e a agenda já está programada. Por um momento, tentei fazer com que ele mudasse de ideia. Mas aí ele disse: você é jovem, Leda. Você tem que aprender a esperar. Só pude sorrir porque a voz do editor era quase que a encarnação da voz que esse livro repetiu por todos os últimos anos: você tem que aprender a esperar. Aceitei na hora. Qualquer dúvida ou outra possibilidade foi resolvida com essas palavras, e eu soube que O Porto sairia em 2016, pela Editora Iluminuras, e que não poderia ser de outro jeito.
"Festina lente" – esse ditado latino que significa: apressar-se lentamente. Sinto que é isso que tenho feito durante todo o ano de 2015, quando esse livro pronto me acompanha ainda em suspensão, sem ser mais meu e ao mesmo tempo sem ser do mundo. Esse fantasma que me perseguiu durante o ano todo e que me impediu de começar a escrever um livro novo, e ao mesmo tempo permitiu que eu fizesse coisas novas e diferentes de tudo o que eu já havia feito. Apressar-se lentamente. Saber olhar para o crescimento lento das plantas, seguir o ritmo que conduz os dias. Hoje vi a primeira grande árvore de natal na Avenida Paulista: é um sinal: o ano de fato está acabando. Talvez este ano, que começou com o ponto final do livro que eu estava escrevendo nos últimos três, tenha sido o mais marcado por ele: não incluí mais nenhuma palavra no Porto, mas ele continuou a me ensinar que as coisas têm o seu tempo próprio, e que a minha tarefa é talvez simplesmente descobrir esse tempo interno das coisas, abrir o espaço para que os tempos particulares se façam, se realizem, se descubram e se esqueçam. 2015 foi um ano longo e no qual aprendi que esperar não significa ser passiva em relação às coisas: ao contrário, a espera pode ser uma condição extremamente ativa. Reconhecer-se incompleto. Levar as coisas com a força suficiente e com a pressa suficientemente pouca.
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Bilhetinhos
Entretempos
abril de 2021
Nós gostávamos de deixar bilhetinhos quando nos despedíamos. Isso foi há muito tempo, foi há mais de dez anos. Escrevíamos o recado que seria entregue ao final do encontro seguinte: eram pedaços pequenos de papéis com letrinhas apertadas nos quais dizíamos coisas muito importantes, e que eram dobrados sempre várias vezes. Trechos de livros, frases que tínhamos formulado depois de alguma conversa, descobertas solitárias a partir de experiências conjuntas, medos, desejos que queríamos compartilhar mas não sabíamos como – esses bilhetes eram uma solução possível para manter o nosso diálogo depois que nos separávamos. Estar longe mas imaginar e aos poucos preparar o momento em que nos veríamos de novo. A cada vez que nos víamos, as coisas eram sempre muito intensas, muito sérias: tudo era levado com uma gravidade que chegava ao insuportável, e os bilhetes eram uma maneira de continuar depois do fim o que de fato não tinha fim. Falávamos mesmo isso nessas cartas minúsculas: que, entre nós, nada nunca terminava, nada nunca tinha forma nem limites possíveis. Talvez por isso fizéssemos papeizinhos tão pequenos: porque não tínhamos como fazer bilhetes gigantes, já que eles não caberiam nos bolsos e nem poderiam ser entregues de maneira tão discreta e tão secreta quando nos separávamos.
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Onde todos viviam dormindo
Coletivo leitor – SOMOS Educação
novembro de 2019
Em uma carta que escreveu para um grande amigo que ela nunca mais veria, a pensadora francesa Simone Weil diz que “se por acaso você pensar em mim de vez em quando, que seja como pensar num livro que foi lido na sua infância”. Por isso, não é da Simone Weil que quero falar aqui; mas sim, como ela mesma pede, dos livros lidos na infância, e de como é pensar neles.
Vejo então as páginas, as imagens que surgem quando falo de livros da infância. Uma caverna onde os cristais são sonhos esquecidos, ou um menino que junta ingredientes na casa da avó para fazer um remédio mágico, ou um pântano onde só afunda quem entristece, ou uma bruxa trancada no armário que só aparece ao ouvir uma musiquinha cantada até o final. São lembranças que ficaram guardadas num ponto engraçado do tempo: quando penso num livro que li quando era pequena, não é exatamente porque volto a ele, mas na verdade porque aquelas imagens chegam até mim, partindo de um nível muito profundo, a que eu não costumo ter acesso. Ilustrações ou frases que chegam no meio do dia, sem explicação, cobertas por uma névoa espessa do passado – mas que nem por isso contaminam ou fazem pesar o ar ao meu redor. E pouco depois somem de novo: não sinto necessidade de me deter sobre elas, e parece que elas também não sentem necessidade de se manter na minha memória. Lembro com afeto, sem apego. Com simpatia, sem nostalgia. Lembro mais dessas imagens quando estou com sono – e por isso normalmente nem percebo que estou lembrando.
É talvez também por causa dessas memórias meio sonolentas que às vezes abro a porta de casa, chegando de um dia longo na rua, e o que me vem à cabeça é o refrão: “… uma casa sonolenta, onde todos viviam dormindo”. Às vezes também pontuo mentalmente algumas frases que digo com essas palavras. Porque qualquer frase que puder ser finalizada com “numa casa sonolenta, onde todos viviam dormindo” se torna uma frase melhor. Ainda mais para quem já conheceu tão bem essa casa: onde há uma cama com uma avó deitada sob um menino deitado sob um cachorro deitado sob um gato deitado sob um rato deitado sob uma pulga.
A casa sonolenta, de Audrey Wood, ilustrado por Don Wood – que repete esse mesmo refrão a cada uma de suas páginas –, é um livro que li muito, muitas e muitas vezes, quando era criança. Tantas que essa leitura era um pouco como quando a gente repete uma palavra até ela perder o sentido, e se tornar um monte de sons gostosos de dizer, que fazem cócegas na língua: a casa sonolenta, a cama aconchegante, a avó roncando, o menino sonhando, o cachorro cochilando, o gato ressonando, o rato dormitando, a pulga acordada – tudo ia virando um monte de borrões, manchas lindas de tons azuis amarelados.
É um pouco difícil pensar que esse livro foi feito por alguém. Que foi escrito e ilustrado por alguém. Porque ele está entre aquelas coisas da infância que parecem sempre ter existido – como as canções, como a voz dos nossos pais ou os quadros pendurados na parede. Uma avó que sempre esteve dormindo, desde os princípios dos tempos; e uma pulga que sempre esteve desperta, que sempre veio picar o rato, que sempre assustou o gato, que sempre arranhou o cachorro, que sempre caiu sobre o menino, que sempre deu um susto na avó, que sempre quebrou a cama, nessa casa sonolenta onde já ninguém mais estava dormindo. São coisas que continuam acontecendo ali, ininterruptamente, naquela fronteira do sono em que nós ainda não dormimos, mas onde estamos tão sonolentos que já não somos mais adultos.
Acho que todas as casas de quando éramos crianças, assim como todos os livros que foram lidos por nós crianças, são, de uma forma ou de outra, casas sonolentas, livros sonolentos. Porque, quando viram memória, essas coisas ficam esparramadas por entre os sonhos, assim como toda a infância: um período da vida que ficou cheio desse tom azulado. O sono do que se tornou a infância se parece com uma nuvem que entra pela janela e cobre todos os cômodos, os móveis e as pessoas de uma camada fina e pesada, que puxa tudo um pouco mais para baixo.
É essa a atmosfera de A casa sonolenta, um livro que já nasceu antigo. E foi envolvida por ela que eu abri a sua continuação – A lua cheia na casa sonolenta. Também de autoria de Audrey e Don Wood, nesse livro o que acontece é exatamente o contrário: a casa sonolenta está, nessa noite sob a luz da lua cheia, completamente desperta. Ninguém consegue dormir. Na cama bem larga, a avó agora está acordada; o menino está agitado; o cachorro, pirado; o gato, assanhado; e o rato, assustado. Descobri agora, adulta, que nem mesmo a casa sonolenta está sempre adormecida. Descobri que nas noites de lua cheia nem mesmo a casa sonolenta consegue dormir. E descobri que a casa sonolenta, mesmo que localizada nesse nível distante da infância em que tudo está dormindo, pode às vezes se agitar por dentro e acordar todo mundo, voltar a existir e trazer até novidades – tudo está também desperto. Até que um grilo tranquilo venha cantar uma canção para acalmar a todos.
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Convite à ignorância
Novas Leituras #48 – Cia. das Letras
abril de 2018
“Ninguém é pai de um poema sem morrer”. Imagine que essa frase seja dita por um educador, no início de uma aula sobre poesia. Como as pessoas iriam reagir? O que isso quer dizer? Essa pode parecer uma frase absurda, sem sentido ou até mórbida, mas, a partir dela, podem nascer reflexões interessantes. Por exemplo: conceber um poema, ser o seu “pai”, isso significa também perder algo de si, doar-se para os versos e, com isso, morrer um pouco. Essa é somente uma interpretação possível. Ou então: a leitura de um poema tem a ver com uma espécie de morte em vida; quando lemos, lembramo-nos de que o mundo é muito maior do que a nossa individualidade, adotamos aquilo que lemos, numa identificação com algo que foi escrito por outra pessoa e, assim, nos tornamos maiores do que somos. Morrer, nesse caso, significa confundir-se com aquilo que a princípio não é “eu”. Mas por que o poema teria esse poder? Talvez porque os elementos externos, as imagens, as árvores, os pássaros, sejam também metáforas para as nossas percepções mais íntimas e secretas: o mundo inteiro, então, tem a ver comigo; eu tenho a ver com o mundo inteiro.
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Reviver e progredir –
para Elisa Kauffman
Abramovich

Nossa Voz – Casa do Povo
dez. 2017 – jan. 2018​​​​​​​
Temos que acreditar nos fantasmas. Eles também existem. Pelo menos para nós, que conhecemos a Casa do Povo. Nesses andares amplos e livres, em meio às paredes nuas e por entre os tacos do chão, tanta história repercute que é difícil frequentar a Casa e não perceber passar, de vez em quando, algo ou alguém que parece assombrar o ambiente ao redor. Muita gente – vinda sobretudo de um Leste que não existe mais, fugindo de países cujos nomes já mudaram e se fundiram com outros – chegou até aqui. Pessoas que muitos de nós nem conhecemos; várias delas morreram antes mesmo de termos nascido. E, ainda assim, seus atos não apenas possibilitam os nossos como também continuam através daquilo que fazemos, daquilo que essa Casa povoada e assombrada nos inspira a fazer: um passado que não morreu junto com quem está morto, mas que, ao contrário, participa da atualidade a ponto de manter vivas essas pessoas que agem por nossos gestos e falam por nossa voz.
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O mundo está correndo
Revista Gratuita – Chão da Feira
2017​​​​​​​
Havia um tempo em que havia alguém que vivia do lado de fora das palavras. Esse é um dom inato que quando perdido passa a ser quase impossível de ser recuperado: era alguém que conseguia enxergar um tempo completamente externo àquele mesurado. Então como um gato ela tinha os olhos grandes para observar de longe os lábios que modelavam sons estranhos; acompanhada sempre por um mundo inacessível trancado com portas feitas de pressupostos, ela olhava tudo e às vezes ria, ria alto, ria muito, porque era mesmo engraçado esse absurdo intranquilo respeitado por todos sem nenhuma pergunta.
Às vezes também chorava, até gritava ou urrava, esperneava sozinha e chamava a atenção daqueles que estavam ao seu lado: perguntavam-lhe o que era, procuravam ajudá-la, davam-lhe mimos, cercavam-na, mas nada nunca bastava por - que antes de qualquer coisa havia a perplexidade dos dias que se invertiam, os barulhos ordenados, as horas seguidas por todos como se fossem carneiros que para ela eram mares, eram cavalos ou monstros — mas nunca com esses nomes. Naquele tempo distante, depois de chorar bastante ela então se distraía, o rosto inchado, irritado, as bochechas palpitavam, ela deitava cansada e os olhos ainda enormes voltavam a ver aquilo que ninguém mais reparava. Ela devia ser velha, cheia de rugas nos dedos e nas orelhas vermelhas; quando entregava-se ao sono seus sonhos de pronto alcançavam as imagens ancestrais que tanto custam chegar ao hábito dos insones: sonhava com grandes florestas, árvores anciãs que cantavam muito baixo, astros articulados em linhas fracas e retas, pedras pontiagudas lançadas em uma guerra, mulheres e homens em roda dançavam todos pintados, a noite durava muito e quando ela enfim acordava continuava a ouvir aquilo que cochichavam, para o que não havia qualquer tradução possível.
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Rosa Luxemburgo nas escolas ocupadas
Outras palavras
2016​​​​​​​
O mestre budista Nagasena, em um de seus diálogos com o rei Milinda, entrega a ele um livro, contando que foi escrito por um poeta que viveu 2 mil anos antes. Nagasena pergunta ao rei se ele ainda pode ouvir o poeta antigo. “Aguça o teu ouvido”, pede, “o que escutas?”. Milinda diz escutar um pequeno rangido. “Aguça o teu ouvido”, repete o mestre. Millinda escuta um homem que raspa uma pena sobre um volume desenrolado. “Aguça o teu ouvido.” Milinda consegue escutar então a respiração do poeta, o barulho de seus pensamentos enquanto milhares de anos antes escreve o livro que agora ele tem nas mãos.
Aguçar os ouvidos para escutar os ruídos de um tempo que passou e que deixa rastros na atualidade é um ato mínimo, imperceptível, mas do qual quase tudo pode nascer. Quanto do passado está em nosso tempo? O que hoje lança luzes sobre os outros tempos tantos?
Imagino que foi de perguntas como essas que surgiu a peça Rózà, que nos abre o espaço para escutar as cartas escritas por Rosa Luxemburgo na prisão, em Berlim, logo no início do século 20. Na cena, três atrizes trazem à tona não apenas a voz da revolucionária, pensadora ou economista, mas da mulher que passou anos em uma cela, que zelava por sua gata Mimi, que cultivava um jardim. Mulher múltipla, que só existe em movimento e que nos conta que finos fios invisíveis podem ligá-la, de dentro do quarto fechado, ao movimento do mundo. Devem ser esses os fios que também trouxeram os ecos de suas palavras até nosso agora, quando nos sentamos no espaço utópico do teatro para assistir a essa peça, que trabalha na tensão sutil de conjugar os tempos históricos com esses que vivemos hoje. Reconhecemos assim que a História é toda ela feita também de seres pulsantes de vida e desejo, e nisso descobrimos que a atualidade não deixa de ser constantemente atravessada por fatos firmes que um dia serão lembrados.
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Dois poemas para os dias
Blog da Editora Iluminuras
julho de 2016​​​​​​​
ode aos dias longos
faz tempo era manhã:
anos atrás acordávamos
mas ainda o cheiro fresco
fácil de achar no corpo
do café – ainda o rastro
nítido dos sonhos da noite
funda de ontem –
décadas dentro de um dia
que conforma pelas frestas
fecha a porta da frente
completa uma linha firme
contempla o que formou.
vamos dormir então
deitar nessa cama feita
no princípio dos séculos
estamos cansados
foi um dia longo:
afunda na memória –
antes de adormecer
ao afastar os lençóis
diremos ao falso fim:
que a fundação de muitos
seja feita também deste.
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Atrás de todas as coisas
​​​​​​​Fora de mim
março de 2015
Sou testemunha da infância dela que corre ao meu lado: estamos no mesmo banco de trás do carro, mas ela assiste a um desfile de mundos misteriosos pela janela (por que nunca pode fechar o cruzamento?) enquanto o meu olhar ultrapassa a rua e não fixa ponto nenhum. Daí me vejo comentando com os adultos do banco da frente: que essa avenida costuma estar mais congestionada. No que eu e ela nos entreolhamos e a percebo interrogativa, como se tentasse depreender um significado impossível a partir do que acabo de dizer: para ela essa frase é enigmática, pertence a um universo hermético a que ela esteve sempre ligada sem nunca poder conhecer. A frase que trata da frequência do congestionamento da avenida repercute dentro de sua cabeça, cheia de realidades secretas e imensas: talvez contenha a resposta para todos os problemas, a solução dos mistérios; mas ela não tem acesso a isso. Essa frase, como que contornada por uma faixa amarelo e preta, é de acesso restrito: e ela só pode vê-la de longe na tentativa de adivinhar o que é que eu quis dizer: o que é que os adultos sabem e que ela não pode saber; qual é o segredo que se esconde atrás de todas as coisas.