pintura original de Gabriela Sacchetto
A tristeza é um estado que por muito tempo explorei como uma espécie de ambiente – chegar em casa depois de um dia todo fora. Um lugar familiar, que reconheço e onde me reconforto sempre que visito: uma morada que remete a outros tempos, sensações antigas de antes que eu possa me lembrar. Não é exatamente ruim; tem uma calma convidativa, uma clareira no meio da floresta. Parece que certas coisas ao meu redor soltam raios muito agudos que só vou conseguir receber com a verdadeira atenção se entrar nesse estado particular que eu chamo de estar triste. Estar triste não tem a ver com a crise, nem com a confusão, nem exatamente com a dor; acho que a tristeza é na verdade o momento seguinte, quando já não estou mais no meio da tempestade mas me retiro dela – e a observo, contemplativa, pela janela.
Ou então é o amanhecer depois do maremoto, quando a lembrança e os resquícios das ondas gigantes ainda estão muito frescos na pele e nos ouvidos; mas o céu branco e o mar plácido não dizem nada, parecem ter perdido qualquer memória do que aconteceu na noite anterior. É uma paz um pouco perversa, um pouco perplexa. A tristeza se funde a um sentimento estranho de alívio, de um lado, e de impotência conformada, de outro.
Pode ser também a desordem da casa depois que a festa acabou. Copos usados, garrafas vazias, papéis no chão, tanta coisa nessa noite e todo mundo foi embora. É uma imagem que já é um clássico, e que não deixa de me revelar alguma coisa profunda sobre esse sentimento. Eu queria ampliar aquilo que chamamos de tristeza, encontrar outros significados, os meus significados, para essa palavra. Talvez porque ela seja uma das palavras que me acompanha desde que me lembro, desde muito antes que eu tenha aprendido o que ela quer dizer. No mundo em que vivemos, é uma palavra que acabou carregada demais por um peso pesado – restrita ao campo que encerra os sentimentos negativos a serem evitados, que precisam pelo menos ser vencidos e superados. Mesmo assim, sempre me agarrei à tristeza, ou àquilo que chamo de tristeza; é um sentimento que sempre exerceu sobre mim uma atração estranha, sem que eu nunca soubesse o motivo. Demorei para entender ou para localizar por dentro o gosto que sinto quando digo que estou triste – e que não é bem amargo, ou não é só amargo. Aquilo que sei há bastante tempo, mesmo antes de saber que sei, e que queria explicar, é que o gosto da tristeza nunca foi ruim.
A imagem do fim da festa é boa porque ela é bastante ambígua. Também a imagem do dia seguinte ao maremoto é cheia de ambiguidade. Essas duas, uma ao lado da outra, são simetricamente opostas – e eu acho que é dessa sensação misturada, na qual as fronteiras entre o que é bom e o que é ruim se dissolvem como tinta na água, que estou tentando falar. No caso do mar tranquilo depois das ondas imensas, reviravoltas e tempestades, o alívio de ter sobrevivido ao que já passou se mistura ao terror de compreender o que se viveu, processar as lembranças recentes de fúria e de medo e aceitar que elas aconteceram, mesmo que a calmaria torne absurdas as experiências que continuam pulsando no corpo ainda arrepiado. A gente se pergunta se foi um sonho ou se realmente viveu esses momentos nos quais as ondas ameaçavam nos engolir. No caso do fim da festa – e dessa imagem falo com mais propriedade, já que ela está muito mais próxima do meu repertório de vida –, a sensação é mesmo contrária: depois da euforia, do álcool, dos encontros, plena madrugada ou começo da manhã, vem aquela melancolia característica de sentar no sofá e admirar a bagunça, escutar ainda tonta o eco da música alta ressoar no silêncio.
Lembro de quando, já no fim da adolescência, entendi que nenhum sentimento que eu tinha aprendido, entre toda a gama daqueles possíveis, fossem positivos ou fossem negativos, dava conta da sutileza e da amplidão do que eu experimentava. Olhava para as paredes de tijolos do meu quarto com um fascínio engraçado, meio desconcertada, tateando a minha interioridade e tentando dar um nome para alguma coisa que não tinha nome. Daí um dia, nessas noites longas que eu passava em claro numa observação detalhada de tudo o que me cercava (como se as coisas dispostas no mundo pudessem revelar sobre mim algo que eu não sabia), desceu no meu corpo uma intuição explosiva: encontrei um tesouro escondido. E era simplesmente a revelação: que existe um ponto de contato entre a tristeza e a alegria. Existe uma região incerta, meio escura e meio clara, como o começo ou o final dos dias, onde a tristeza e a alegria se tocam em silêncio – e é nesse ponto difícil do mundo que eu moro, que eu sempre morei.
Como eu podia explicar? Quem é que iria entender? São sensações muito velhas – que não são minhas, que são do tempo, e que me convidam para fazer parte delas. Eu não tinha com quem falar sobre tudo isso que me atravessava e que era imenso, era realmente maior do que o meu corpo e devia ser também por isso que eu passava horas olhando os meus dedos, o teto e a janela: eram formas de testar os limites, de tentar me conformar dentro dos contornos, traçar o dentro e o fora. Se alguém soubesse dessas minhas madrugadas de contemplação quieta de tudo, como se eu estivesse mesmo em um barco no meio do mar, talvez dissesse que eu estava um pouco louca ou no mínimo deprimida. Mas eram processos de pesquisa, eram experimentos importantes, eram expedições que eu fazia parada e que às vezes chegavam a me levar a conclusões como aquela. Fazer da tristeza uma navegação até a alegria, percorrer a extensão desses mares internos que carregam consigo a profundidade vertiginosa de todos os meus ancestrais, todo o meu passado submerso: um mundo debaixo d’água cheio de cores, cheio de peixes, escamas brilhantes, algas e corais. Quem iria acreditar que era isso que eu estava fazendo, imóvel por horas sentada na cama no mesmo lugar?
Acho que menti quando disse que a imagem do fim da festa é aquela que está mais próxima do meu repertório de vida. É verdade que a conheço, na prática, muito melhor. Sempre vivi numa cidade sem mar e cheia de festas, então é incomparavelmente maior a quantidade de ambientes festivos do que de ambientes marítimos que frequentei na vida. Mesmo assim, as imagens que estão ao meu alcance quando penso ou quando escrevo dificilmente são urbanas, raramente se aproximam das experiências do cotidiano da minha cidade. Desde muito pequena, ainda que não tenha crescido em uma região litorânea, eu era apaixonada por baleias e golfinhos, e pensava o tempo todo em tudo o que acontecia no fundo do mar enquanto eu estava aqui, na minha casa, tentando dormir ou andando de bicicleta. Não é à toa que minhas metáforas acabem sempre voltando ao mar, muitas vezes sem que eu nem perceba ou tenha planejado. Eu nunca vivi um maremoto e não sei como é, de fato, a manhã que segue essa catástrofe da natureza; só estive em alto-mar uma vez, e nem era tão alto assim. Mas o que eu contava dessas explorações noturnas da adolescência, aventuras enormes sem me mexer do lugar, acho que é disso que estou falando também agora, e é por isso que a tristeza para mim tem a ver com imaginação: conheço um outro mar, por outros meios, um mar invisível que não tem praias, que invade a casa e entra pelas janelas, escapa pelas gavetas, uma correnteza forte e muda que puxa a gente um pouco para os lados, que eu quero mostrar para todo mundo mas não tenho como apontar.
Pensar nesses mares confusos é voltar para a infância e para um desejo de ser treinadora de golfinhos, para a fascinação que eu sentia assistindo a um filme no qual um menino libertava uma baleia orca. Eu tinha um livro chamado Baleias gigantes do mar: quando abria as páginas, pulavam dobraduras com o rabo da jubarte mergulhando para dentro da água, e eu ficava completamente hipnotizada. Desdobrando uma página cinco ou seis vezes, podia ver o comprimento total da baleia-azul em comparação a uma pessoa, que ficava do tamanho de um inseto perto dela. Nada na história do mundo, nem os dinossauros que já morreram, dizia o livro, é tão grande quanto essa criatura que nada nas profundezas das águas geladas da Antártica e que pesa mais do que dois braquiossauros, mais do que vinte elefantes africanos adultos, mais do que mil e quinhentos homens juntos.
Não sei explicar o efeito avassalador que essas informações e imagens exerciam sobre mim. Quando fiquei mais velha, encontrei a mesma sensação ao ler Moby Dick e conhecer em detalhes o funcionamento de um navio baleeiro americano do século XIX, a anatomia de uma cachalote adulta, os métodos de caça e os arpoadores, o absurdo maravilhoso de procurar por uma única baleia albina no meio do oceano inteiro. Eu li esse livro quando passava as férias em uma ilha, e me lembro de tirar os olhos das páginas e olhar para o mar diante de mim com a convicção nítida de que tudo o que eu via escrito também acontecia em algum ponto daquela extensão sem limites: em algum lugar de fato ainda viviam aqueles seres que eu conhecia pela descrição enciclopédica do livro, e era um prazer dolorido saber que eles ocupam o mesmo mundo que eu.
Talvez tudo isso seja constantemente uma renovação da descoberta que fiz aos sete ou oito anos de idade, e que repetia para todos esperando que ficassem tão impressionados com isso quanto eu estava. Era que eu tinha entendido que na verdade não existe mais do que um mar, e que todas as praias que conhecemos na vida são banhadas pela mesma e única água salgada. Eu perguntava para as pessoas na escola: você sabia que só existe um mar? Não sei o que é que respondiam ou se compreendiam a dimensão do que eu estava dizendo, mas me lembro da frustração por não saber comunicar o quanto aquilo era importante. O que eu queria contar é que tinha descoberto o tamanho do mundo. Até hoje quando penso nisso fico um pouco tonta, parece que me desloco alguns centímetros para fora de mim mesma, tudo ao meu redor também balança, compartilhamos um segredo e eu queria poder dizê-lo em voz alta, mas não posso, não consigo. Mas, agora mesmo, assim que engulo essas palavras impossíveis, percebo que na verdade estou dizendo o tempo todo, que o meu trabalho na vida é dentro desse submarino, e isso que chamo de estar triste é na verdade outra coisa – é uma forma de existir. Quando me dou conta de que a tristeza não é triste, que ela é só uma palavra, e que eu tenho tanta coisa para dizer, o que vem junto com isso é um entusiasmo um pouco cansado, como se eu tivesse uma missão muito grande, a mesma obsessão insustentável do capitão Ahab, e precisasse interceptar um navio inteiro para perseguir o meu desejo. Acho que eu sempre estive muito contente.
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Minhas duas avós nasceram no mesmo ano de 1926. As duas são judias e têm nomes estranhos de quatro letras: Elca e Lili. Lili é mãe da minha mãe e nasceu numa cidadezinha do interior da Iugoslávia chamada Senta. Elca é mãe do meu pai e nasceu em São Paulo, segunda filha de imigrantes lituanos. Lili tinha um irmão e Elca tinha dez. Elca aprendeu iídiche antes de aprender português, era muito boa aluna na escola francesa que frequentava, cuidou dos irmãos como se fosse a segunda mãe deles. Lili falava húngaro e iugoslavo, gostava de comer mil folhas na infância e passou por um campo de concentração na Polônia. Elca hoje usa um andador de rodinhas para caminhar, tem uma expressão quase constantemente amarga e mora no mesmo apartamento há mais de sessenta anos. Lili esqueceu suas línguas maternas e mesmo assim ainda tem um sotaque forte; ela já não anda mais, mas costuma cantar a musiquinha do Palhaço Arrelia para me perguntar como estou: “Como vai, como vai, como vai? Como vai, como vai, vai, vai?”. Tanto uma quanto outra já quase não escutam o que dizemos e precisam de ajuda para se levantar. A velhice assentou-se nas duas, encrustou-se nos rostos que eu conheço, de modo que sinto que elas nunca foram diferentes – é difícil imaginar a juventude de cada uma. Um velho parece ter sido sempre velho, principalmente para quem não é velho.
Gosto de olhar para as duas como se estivesse bem no meio delas: com essa perspectiva que só uma neta pode assumir, por ter o distanciamento de não ser sua filha e ao mesmo tempo ser parente muito próxima. Observo a oposição entre uma e outra e, por essa comparação, as duas personalidades se acentuam – no movimento dos meus olhos alternando-se entre Elca e Lili, compreendo alguma coisa não exatamente sobre quem sou, mas sobre o que me originou sem que eu soubesse disso.
Praticamente não conheci os meus avôs – o pai do meu pai, David, morreu dois anos antes de eu nascer; o pai da minha mãe, Aron, morreu quando eu tinha seis anos, e só me lembro dele doente, sentado numa poltrona, olhando inexpressivo para o nada. É um pouco a mesma memória que tenho da minha bisavó Mina, mãe de Elca: imóvel na poltrona do apartamento, os olhos parados e, no caso dela, os pés muito gordos transbordando para fora dos sapatos apertados. Eu criança ficava impressionada com esses seres que eram velhos como tartarugas, e que pareciam ter sido completamente ressecados pela vida: sobravam rugas, sobravam palavras esparsas ditas com um sotaque estranho, um cheiro de guardado, e eu olhava sem conseguir acreditar que aquelas eram pessoas como eu. Quase não falavam, estavam constantemente muito cansados e eu não sabia por quê. Minhas avós naquela época eram mais ativas, andavam rápidas pela casa delas, cozinhavam, conversavam. Para mim, elas não eram velhas; velhos eram meu avô e minha bisavó, que permaneciam sentados e que pareciam alheios a qualquer coisa e principalmente a mim, que observava os pés de Mina pulando para fora dos sapatos ou via televisão no mesmo quarto em que estava Aron, fazendo de tudo para fingir que ele não estava ali comigo, como se fosse um fantasma. A velhice tinha mesmo alguma coisa a ver com essa presença fantasmagórica, mais ausente do que de fato aqui – e isso me assustava um pouco.
Mas cresci com as minhas avós muito perto, envelhecendo diante de mim, e aos poucos fui entendendo como as diferenças entre as duas me revelam coisas importantes. Olhar não para uma, nem para a outra, mas para uma em relação à outra: é interessante porque quase nunca vi as duas juntas no mesmo ambiente, já que meus pais se separaram quando eu era muito pequena. Mas se coloco, na imaginação, uma ao lado da outra, Elca ao lado de Lili, o que é que vejo? É como se fosse um quadro, um painel imenso que ocupa toda uma parede, e eu observo a expressão dessas duas senhoras olhando para mim, marcadas pelas suas histórias absurdas de vida, inclinadas para a frente, congeladas no tempo, carregando consigo mais de noventa anos de tudo o que lhes aconteceu. Como é possível ter nascido em 1926? Às vezes, quando estou na presença delas, preciso repetir para mim mesma algumas vezes que essas são pessoas que vieram do começo do século XX, que atravessaram guerras de longe ou de perto, que viveram o que já parece tão distante no tempo que eu só consigo imaginar com o aspecto de um filme de época, com cores frias, até trilha sonora – nunca como cenas reais que foram experimentadas por pessoas como eu, que estão aqui agora, como eu.
Lili é sobrevivente de Auschwitz. Ela tem ainda o número marcado no braço, tem ainda os resquícios nas pernas do dia em que foi obrigada a ficar de joelhos no chão carregando uma pedra como castigo por ter assumido a culpa do furto de uma barra de manteiga. Não é que ela fale muito sobre isso; foi minha mãe quem sempre transmitiu essas histórias e a sua importância. Lili é pragmática, não gosta muito de ficar se lembrando da vida que teve, nunca ouvi dela reclamações ou lamentos sobre o que viveu. Das poucas vezes em que perguntei, ela me disse que não consegue entender como é que eles ficavam tanto tempo sem comer nada, e como podiam dormir tão espremidos – de forma que, para um mudar de posição, todos tinham que se mexer também. Ela ri ao contar essa história, por isso é difícil entender que foi realmente com ela que isso aconteceu. Uma vez Lili também me contou que encontrou cascas de batata no chão do campo, e que até hoje consegue se lembrar do quanto foi gostoso comê-las: mais gostoso do que qualquer refeição que já fez em restaurantes. Também isso ela falou com bom humor e um olhar surpreso, como se também ela não conseguisse acreditar no que contava, achando graça dessa história e do absurdo do que viveu, sem qualquer pesar. Com o tempo, com a velhice, sua expressão foi ficando cada vez mais leve, mais infantil: nesses últimos meses, em que ela tem perdido a memória recente e encolhido mais o corpo, eu a encontro em sua casa deitada na cama e ela se parece com um passarinho. Não entende muitas palavras, nunca conseguiu descobrir o que é que eu faço da vida, fala de Deus e do destino com naturalidade e certeza: acho que ela conhece tudo isso por dentro, de dentro, sem que ninguém nunca tenha ensinado nem explicado nada para ela. Às vezes penso que, mais do que judia, ela é um pouco cigana, com suas superstições inventadas, a reza que faz em voz alta toda noite antes de dormir, as músicas em húngaro que ainda canta da infância, seu desapego completo pelo passado, a falta de nostalgia que não combina com o judaísmo que eu conheço, o desprendimento do marido que ela nunca amou, o carinho simples que dá para os netos, sem cerimônia, sem culpa. Nunca a vi culpada de nada, o que me surpreende porque é difícil entender como é que ela passou pelas coisas inimagináveis pelas quais passou e agora vive assim fazendo piadinhas, cantarolando, pensando nas coisas todas da vida sem dar muito valor nem gravidade a nenhuma delas. “Se você vai bem, eu vou também”, ela me diz depois que pergunta como estou. “O importante é ter saúde”, é outra das máximas que ela sempre repete. É uma sabedoria que me soa ancestral, que Lili traz não sabemos de onde – nem ela sabe de onde, e não se pergunta. Ela aceita.
Elca na verdade é Olga. Pelo menos é assim que ela é chamada e conhecida pela maioria das pessoas. Todos os seus irmãos, como ela, ganharam nomes em iídiche que são estranhos ao Brasil, e que não foram compreendidos nem pelo datilógrafo do cartório, que os escreveu como pôde; por isso cada um deles acabou ganhando também um segundo nome, mais corrente e compreensível. Buna virou Berta, Liba Cipa virou Elisa, Ida Reise virou Rosinha, Elca virou Olga. Para mim, ela sempre foi Vovó Olga, e sempre morou num apartamento escuro de frente para o Minhocão, cheio de coisas muito antigas há décadas no mesmo lugar. Demorei para entender que foi nessa casa que o meu pai cresceu, porque todos os objetos e papéis e livros sempre pareceram tão cristalizados nas estantes, como pedras encrustadas na parede de uma caverna, que era difícil visualizar uma criança morando naquele apartamento de ar parado e sofás empoeirados. Elca instala esse clima pesado em todos os ambientes que ocupa: é uma presença tão densa que chega a dar a sensação de que mesmo as cores à sua volta ficam mais escurecidas, puxadas para um tom marrom ou bege, como os seus casacos puídos ou como os gefilte fish e kneidel que ela cozinha melhor do que qualquer uma de suas irmãs. Até quando ela telefona e escuto a sua voz, quando toca a campainha antes de entrar na casa do meu pai, com isso vem de imediato um certo cheiro que eu não sei de onde surge, mas que é exatamente o mesmo que emana das sacolas de plástico que ela sempre carrega: parece que ela leva consigo essa força gravitacional que nos puxa um pouco mais para o chão, que faz nossos passos ficarem mais lentos e mais arrastados. Elca é um arquivo vivo, uma memória ambulante, alguém que se alimenta do seu passado e do passado de todos que conheceu. Nunca vi uma pessoa lembrar-se com tantos detalhes de datas, de nomes e de episódios, das histórias dos irmãos, dos pais e do marido, dos amigos do marido, dos filhos e dos amigos dos filhos: ela quer saber detalhes sobre qualquer fato que contamos, e posso vê-la guardando a informação em uma de suas inúmeras gavetas mentais, que são tantas quanto as que existem de fato nos armários de seu apartamento; ela cataloga tudo, os desenhos, documentos e fotos, assim como decora os nomes de todos os remédios que toma e o horário em que deve tomar cada um. “Não é fácil” é a frase que ela sempre repete, seguida de um suspiro longo e que contamina a todos que estão junto com ela. Quando pergunto como está, responde “Vou indo”, e dá um sorriso melancólico com o canto do lábio, que contém todos os lamentos que ela ainda não fez, mas poderia fazer. Elca perdeu a filha, irmã do meu pai, para um câncer. Antes disso perdeu o marido, que passou mais de dez anos doente do coração. Ela nasceu em São Paulo; mas o iídiche que sabe falar, a comida que sabe fazer e o olhar duro que ela sempre tem nas fotos, tudo isso mostra que sua nacionalidade não é nem brasileira, nem europeia, mas simplesmente das entranhas do Leste, de muito longe, desse mundo onde as coisas são densas e variam entre tons mais escuros e mais claros de marrom.
Sempre penso que elas duas são o contrário inesperado uma da outra. Cada uma leva consigo uma face de um mundo que não conheço, que às vezes tento alcançar mas do qual só posso ver as bordas na pele dos dedos de suas mãos. Tenho a sensação de que, se eu pudesse unir essas formas escuras trazidas por Elca, de um lado, e por Lili, de outro lado, se pudesse encaixá-las umas nas outras e compor uma forma nova, conseguiria montar finalmente a chave para abrir uma porta. Diante delas, às vezes fico confusa, como se o futuro de repente viesse até mim para dizer o quanto vou lembrar desses momentos que vivi com as minhas avós: elas têm hoje 93 anos, eu tenho 30. Um dia serei velha como elas, e estarei como elas na boca do fim da vida, e sei que lembrarei da maneira como andam e como se movimentam: sei que vou querer conversar com elas, dizer que enfim entendi algo do que veem quando olham para mim. Por enquanto não entendo, e as observo como um enigma exposto e lacrado à minha frente. Elas avistam o mundo, cada uma à sua maneira, empoleiradas no tempo quanto mais envelhecem, de um ponto que é muito distante e que é também muito próximo de todos nós que estamos aqui junto delas. Uma vez, numa mesa de Pessach, minha prima, que tem uns oito anos a mais do que eu, reclamou de sua própria velhice e dos anos que passam rápido demais – nunca consigo esquecer de nossa avó Lili naquele momento, ali conosco, sentada na cabeceira, observando com olhos ausentes a família inteira que nasceu toda dela. Ao ouvir minha prima se lamentar do tempo, Lili ria baixo, ria para si mesma, ria de um lugar que era só dela: um lugar que era a sala onde todos estávamos, mas que era também outra sala onde Lili estava sozinha, num outro ponto do tempo do mundo.
Quando estou na presença das minhas avós, as experiências muitas vezes se misturam com as lembranças ou com as possíveis lembranças que um dia virão – e acontece de eu não saber dizer se estou com elas ou se estou me lembrando delas, ou mesmo se são elas que talvez estejam se lembrando de mim. É um passado tão imenso que elas trazem em seu corpo, e são passados tão diametralmente opostos entre si, que tudo ao redor muda com isso também; o presente se encolhe, fica muito pequeno. Eu aprendo com elas a transitar pelo tempo. Elas me ensinam, sem dizer nada, a entender o tempo ora como graça, ora como peso, ora como essa alquimia estranha entre o peso e a graça – que deve ser parecida com os movimentos dos seres que vivem embaixo d’água, ou daqueles que voam muito alto no céu.
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Cada vez menos tenho tido vontade de falar coisas. Faz quase dois meses que estamos em quarentena, e posso contar nos dedos de uma mão as vezes em que eu saí de casa. Quanto mais tempo vivo aqui dentro, parece que tudo se mistura, inclusive os dias, que transbordam um para dentro do outro: nessas semanas que vão ficando mais espessas, tenho pensado muito, tenho sonhado muito (sonhos intensos como há muito tempo eu não tinha), tenho tido grandes ideias enquanto tomo banho; e tenho cada vez menos vontade de falar coisas. Fico muito tempo quieta, brincando de prestar atenção, não importa muito no quê. Uma atenção que é mais um exercício, uma ginástica: presto atenção nos gatos, nos movimentos que eles fazem; presto atenção nos quadros que estão na parede cada vez com um detalhe novo e diferente, como se eles se mexessem em câmera lentíssima ou, se eu piscar, mudassem um pouquinho de cor; presto atenção nos móveis, nos cantos da parede, nos objetos espalhados pelo apartamento, nas rachaduras da cristaleira, e eu nunca tinha pensado que um dia teria uma cristaleira.
Outro dia comecei a ler A guerra dos mundos. É um livro do penúltimo ano do século XIX. Um livro que vem de uma Inglaterra apavorada com a ameaça da superpopulação e com a possibilidade da extinção da espécie humana, que nunca tinha sido imaginada até aquele momento. Marcianos com cérebros muito mais complexos do que os nossos invadem o planeta Terra: surgem de repente com naves que primeiro parecem cilindros e, depois, parecem bancos de ordenhar. Marcianos que olham para nós e não sentem empatia, não se comovem – não é que eles matam as pessoas porque são cruéis. Somos para eles o que as formigas são para nós: carbonizar tudo em segundos com um raio da morte é tão grave como é grave destruir um formigueiro.
H. G. Wells avança com um texto tão rápido que me senti um pouco como se assistisse um filme, ou como se lesse o roteiro de um filme. Era uma época em que o cinema começava a querer existir. Em poucas páginas os marcianos já ocuparam boa parte da cidade e já mataram muita gente, já se aproximam de Londres, a cidade rapidamente se esvazia. Li muito antes de dormir e à noite tive pesadelos. O presidente do Brasil andava em uma casa vazia com seu bando, todos carregando revólveres, e eu me escondia atrás dos móveis para que eles não me vissem. Em volta da casa que era enorme, o cenário de um mundo abandonado, uma cidade deserta e devorada, como nos filmes de zumbi. Acordei preocupada. Pensei que tudo o que vivemos hoje, um vírus que assola a população, um governante estúpido e sua trupe de patéticos, pra dizer o mínimo – é tudo do mesmo nível de absurdo que se marcianos tivessem pousado de repente no meio da cidade. Num cilindro que aos poucos se desatarracha, surgem essas massas amorfas e verdes, que rastejam pesadas e disparam raios de calor intenso.
Os ingleses ficam sabendo da chegada dos marcianos pelos jornais, que publicam várias edições em um mesmo dia e são distribuídos com urgência, ainda com a tinta fresca. Mas, no primeiro momento, os ingleses não se espantam tanto assim com as notícias da invasão alienígena – são ingleses, afinal de contas. Estão acostumados a viver em segurança, e estão também muito acostumados com notícias alarmantes, que chegam todos os dias. O espanto é contido e não dura muito. “Na noite passada, cerca das sete horas, os marcianos saíram do cilindro e destruíram completamente a estação de Woking e as casas vizinhas.” Eles leem e, eu imagino, erguem as sobrancelhas, esboçam reações possíveis, procurando em seu repertório de expressões a que seria mais adequada, o espanto que melhor caberia diante dessa notícia. O receio dura no máximo alguns minutos, até a hora do jantar. Depois tomam seu chá antes de dormir e, como não poderia deixar de ser, vão dormir – o que mais poderiam fazer? É só quando a polícia bate à porta dizendo que os marcianos, em suas naves de três pés, avançam com velocidade em direção a Londres, e que se eles não correrem serão também carbonizados, só então que os ingleses entendem que é preciso realmente se assustar: abandonam suas casas e fogem de pijamas no meio da madrugada.
Tenho me sentido assim um pouco como os ingleses da guerra dos mundos aqui dentro da minha casa. Cozinho muito, faço bolos, faço panquecas, tomo café enquanto contemplo uma onda gigante que avança em câmera lenta e destrói a nossa cidade. Uma onda que é gigante e ao mesmo tempo, para mim, aqui entre as paredes, é também invisível. Aprendo todos os dias a me espantar com tudo o que chega pelos jornais, pelas notícias, pela internet, enquanto dentro do apartamento os gatos dormem enrodilhados e eu limpo o fogão, de novo e de novo. Os dias aqui não é bem que eles se parecem uns com os outros, mas eles acho que vão se cavando uns aos outros, criando um outro tempo que é subterrâneo aos dias e que perfura todos eles, um tempo de que não sei como é que vamos conseguir nos lembrar depois, já que o futuro foi sequestrado e olhar para os próximos meses ou anos é abrir os olhos no escuro. Cada vez menos tenho tido vontade de falar coisas.
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Nove anos
25.11.2019
Faz nove anos que eu te prometi que dentro de dez anos te ligaria para lembrar que teriam se passado dez anos. Isso porque estávamos no topo de uma cidade bem no meio da Itália, suados depois de subir muitas e muitas escadas. E quando olhamos para baixo e percebemos a vista, você logo se deu conta de que tinha se esquecido de levar consigo a máquina fotográfica: “Do jeito como sou desmemoriado”, você comentou, “se eu não registrar o que estamos vendo agora, daqui dez anos não vou lembrar de absolutamente nada disso que nós vivemos”. Fiquei quieta por um tempo, pensativa. Percebi de longe a cidade marrom-avermelhada que se esparramava pelo espaço, que parecia de mentira ou uma pintura muito antiga; depois olhei para você com uma profundidade que traiu um pouco o tom já instaurado no ar. Os segundos ficaram mais graves, a distância da paisagem desceu, o silêncio cresceu de tamanho e criou um suspense que eu não tinha planejado. Quando afinal abri a boca para falar, você já estava tenso: talvez imaginando que viria alguma coisa importante ou decisiva pelas minhas palavras. Mas o que eu disse não foi tanto assim. Foi apenas que você não precisava se preocupar muito com isso – porque eu tinha certeza de que não me esqueceria do que estava acontecendo. E atribuí a mim mesma a função de portar por nós dois aquela lembrança, carregá-la comigo pelos próximos dez anos: guardar esse acontecimento, sustentá-lo, nunca perdê-lo, para quando chegasse a hora enfim poder te ligar, te encontrar onde estivesse, e te dizer que exatamente dez anos teriam se passado do momento em que estávamos juntos em uma praça lá no alto de Florença. Apreciávamos a vista, era verão e entardecia, estávamos felizes e estávamos cansados, e tudo isso é verdade e aconteceu mesmo conosco, ainda que não tenham sobrado fotos que tornem nossas imagens palpáveis.
Você disse que eu sou muito engraçada e não sei o quanto levou a sério aquilo que para mim já tinha se tornado uma grande responsabilidade. Naquela noite, no hotel, anotei no meu diário a data que até hoje sei: 30 de julho de 2010. Registrei porque imaginava o ano de 2020 como uma névoa distante e antecipava aquela ligação telefônica que parecia então extremamente necessária. Lembro de passar a noite pensando no que diria quando fosse finalmente cumprir minha promessa, nesse tempo que parecia impossível de dez anos para frente: um lugar abstrato, uma mancha disforme, sons distantes se fazendo e logo desaparecendo, tão baixos, quase mudos, mas suficientes para contaminar o quarto onde nós dormíamos naquele momento dez anos antes disso. Gostei de conseguir visualizar, num lapso daquele presente, quem é que nós dois seríamos; me perguntar se estaríamos ainda em contato e como, tentar imaginar o que teria sido feito das vidas de cada um. Você estava de olhos fechados e eu sonhava sozinha, muito desperta, sem saber mais se eu te via mesmo diante de mim ou se já estava nos perdendo, virando memória também.
Não sei por que sempre gostei tanto de criar esses futuros, essas imagens de outros tempos. É um entusiasmo difícil de ser comparado com qualquer outro: quando acontece de algumas frestas por acaso se abrirem e revelarem um pouco do lado de lá da cortina, eu me agarro a essas visões, quero investigá-las em tudo o que me apresentam. O futuro parece que às vezes escapa do seu lugar, escorrega e tropeça no presente; mas isso é muito rápido, não dura o tempo de um instante, e o futuro já se levanta e volta a ser inatingível. Fico então só com essas possibilidades que se anunciaram por acidente e logo depois se esconderam, fingindo que não existem como se fosse preciso ainda inventá-las do grau zero. São só detalhes de um tempo que não veio, vultos que eu vislumbro e que já desapareceram. Mas a tentação que sinto, depois disso, é aproveitar essas cores efêmeras e transformá-las em formas, em desenhos, em contornos, curvas que levam para mundos que eu ainda não conheço e que já estão dentro de mim.
Entre nós naquela época era tudo tão fresco, tão recente. Eu sentia muitas coisas, escalava o meu desejo que era alto e vertical. Lembro que no começo da nossa história, por exemplo, quando morávamos no mesmo prédio, a expectativa de saber que a campainha poderia de repente tocar, e você aparecer para fazer uma visita – isso me consumia às vezes completamente. Em certos momentos não podia fazer nada, porque antecipava o som do sino que talvez fosse soar, e me fixava nele a ponto de até me perguntar se você talvez já não tivesse tocado, e estivesse me esperando ali em frente há horas para que eu abrisse a porta: não tinha mais certeza de nada, porque o que eu queria e o que vivia, o que imaginava e o que acontecia, tudo se misturava sem distinções possíveis nas fases dos meus sentidos. Quando enfim você chegava, era difícil estar no espaço em que estávamos. Cada detalhe era tão importante que eu não sabia viver nenhum deles. Tudo ganhava uma aura tão forte que eu quase queria que você fosse logo embora para que eu pudesse ficar sozinha e voltar em paz para aqueles momentos que tínhamos passado juntos. Não sei o que é que eu amava. Acho que eram, principalmente, as possibilidades, o tempo que se criava a partir de nós dois ou do que eu queria de nós dois; os edifícios que se armavam e que só se consolidavam quando eu estava sozinha lembrando, e podia traçar minha skyline infinita.
Hoje olho para aquela viagem que fizemos nove anos atrás, que teve para mim tantos sentidos fundantes, e para o que passamos antes e depois dela, e isso ocupa o lugar de pouco mais de dois ou três prédios desbotados que avisto no meio de uma cidade. É assim com quase todas as histórias que já foram: um cenário urbano que posso observar do alto, repleto de construções, torres, edifícios, blocos e monumentos. Cada uma das pessoas que uma vez foram aquelas com quem eu compartilhava um segredo sobre mim; cada uma das coisas que vivi com essas pessoas, das experiências que, enquanto aconteciam, já revelavam lembranças que seriam para sempre visitadas como casas: elas agora se tornaram partes de uma paisagem. Estou em cima de uma nuvem, lá bem alto no céu, e vejo fatos e lembranças pequenos espalhados. Aponto um ou outro, reconheço: um momento, um passado, uma forma, um futuro.
Faz tanto tempo que não sei absolutamente nada de você. E hoje, de fato quase dez anos depois, as coisas mudaram muito. Já não tenho mais tanto aquela sede insuportável de tudo o que está por vir: agora com um tanto mais de bagagem, agora que o passado cresceu e ganhou mais faces, olho para os acontecimentos que compuseram meus anos e por algum motivo eles não são apenas histórias que aconteceram e passaram, mas também desenham no tempo pedaços de outros tempos; de outros futuros que foram possíveis e nunca vieram e nunca virão, mas que fazem parte, de um jeito ou de outro, de quem me tornei no futuro que veio. Vejo uma cidade enorme, cheia de prédios e parques e praças e muitas escadas: vários que eu ainda não conheço, ou que já não conheço mais, e que mesmo assim compõem esse grande mapa.
Quando se completarem dez anos daquele dia naquela viagem, quando julho de 2020 finalmente chegar, já não me pergunto mais se irei realizar aquilo que prometi. Não seria difícil descobrir o seu número, ou pelo menos escrever uma mensagem. Mas já não consigo mais me imaginar tomando essa iniciativa. Acho que, com o passar dos anos, aos poucos compreendi que essas responsabilidades atribuídas por mim são sobretudo minhas – não dizem muito respeito aos outros, como eu queria acreditar na época. Naquele momento, a promessa que fiz a você era também uma maneira de afirmar uma identidade, de projetar um futuro e de certa forma assegurá-lo: precisava de uma reta do tempo um pouco mais clara, mais definida do que a escuridão que sempre se anunciou. Precisava adivinhar qualquer coisa do que eu não sabia para que o chão sob os meus passos não ameaçasse se abrir diante do desconhecido. As coisas eram muito frágeis, muito finas, e eu sentia que poderiam se esfarelar a qualquer momento.
Hoje o tempo aumentou. Não é só uma linha ou uma estrada que vejo adiante, mas a amplidão cheia de ruas da cidade de uma vida. O passado deixou de ser um refúgio, o futuro deixou de ser um caminho – os tempos se misturaram. Graças a Deus, as minhas promessas antigas se transformaram, e posso traí-las sem culpa. Não me importo de incomodar aquela que, nove anos atrás, jurava com certeza e com mistério no topo de um país. Continuo me lembrando, como ela continuo carregando essas lembranças, amuletos, lupas, bússolas, lamparinas muito fracas. Mas também já não dou mais tanto valor para elas, posso derrubá-las e vê-las se quebrarem, assistir aos cacos rolarem no chão, espalhando-se nas ruas, lá longe, lá muito embaixo: escorregam para dentro de um buraco na viela, desaparecem e depois despontam, novos, velhos, de outro modo, prometem-se entre si outras coisas que não sei.

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A hora roubada
27.09.2019

Nunca gostei do final de semana quando chega o horário de verão. Uma hora inteira do dia desaparece com a meia-noite de sábado para domingo: essa perda repentina dói um pouco a cada ano. A virada de onze e cinquenta e nove para uma da manhã deixa um buraco quase físico nos dias seguintes. Sempre que olho os relógios, depois dessa mudança, eu me sinto traída: confiava neles, tínhamos um acordo. Mas agora mentem sem pudores, depois de terem roubado uma porção importante do nosso tempo da vida. Quando eu era criança, isso me atormentava a ponto de alimentar um pesadelo frequente, no qual os dias encolhiam, ficavam cada vez menores, e eu era comprimida por eles assim como nos filmes de aventura as paredes vão se fechando até quase esmagarem os protagonistas. Essa subtração de uma hora redonda do dia me intrigava demais, porque eu não conseguia entender quem é que teria autoridade suficiente para se apropriar assim dessa substância impalpável que é o resultado de uma volta completa do ponteiro menor. A vida se mede em segundos, minutos e horas; esses são os parâmetros com os quais sabemos poder contar com certeza, que nos dão a segurança de se repetirem com uma regularidade idêntica, independentemente de qualquer coisa que possa acontecer. Então como é possível que, de um dia para o outro, sessenta minutos inteiros desapareçam sem deixar rastro? Parece a quebra de um grande pacto do funcionamento do mundo: seria como se determinassem de repente que, a partir de agora, os copos vão cair para cima, ou que os círculos passarão a incluir ângulos retos.
Diante da minha angústia da infância por causa desse assalto impossível, explicaram que essa era uma questão de economia da energia elétrica nas cidades grandes – e que não se tratava exatamente de um roubo, mas apenas de um empréstimo. Mais tarde, disseram, dentro de alguns meses, essa hora que foi levada será entregue de volta, e vamos ganhar um dia mais longo do que os outros, para compensar aquela madrugada que começou com um vácuo em seu miolo. Certo – eu pensava –, então quer dizer que não se pode mesmo matar o tempo; existe um equilíbrio necessário e nada some para sempre; nossa hora perdida há de voltar. As vidas então não serão menores nem mais curtas, por mais que aquele domingo tenha ficado manco: haverá um outro, em breve, que terá pernas a mais. Isso foi o princípio de um consolo.
Mas rapidamente comecei a elaborar hipóteses de alcance maior: eu era criança e gostava muito de pensar no que chamava de “toda a humanidade”. Imaginava o efeito que o furto de uma hora poderia causar a essa massa disforme e cheia de rostos que habita o planeta inteiro. É verdade que, depois que eu soube da promessa da devolução da hora roubada quando o horário de verão acabasse, consegui me conformar um pouco. Um pouco, mas não muito: rapidamente entendi que isso não era o bastante para contemplar “toda a humanidade”. Comecei a pensar nas pessoas mais velhas, que já tinham passado por essa perda muitos e muitos anos seguidos, e fiquei preocupada. Principalmente quando entendi que, se a convenção é alterar o horário durante uma estação inteira ou até um pouco mais, isso quer dizer que muitos dos integrantes de “toda a humanidade” acabarão por não ver a transição para a normalidade anterior, pois vão morrer durante esse período, e assim nunca terão a sua hora de volta. Essas pessoas que morrem durante o verão – eu pensava quando era criança – terão realmente perdido para sempre uma hora inteira de suas vidas. Uma hora a que toda a humanidade tem direito, seja lá como for usá-la, e que não pode ser levada embora, como se fosse um objeto qualquer que pode ser dado ou tirado. Uma hora não desaparece: é um tesouro sagrado, um fio importante para a trama dos tapetes dos nossos dias – não haveria economia no mundo que justificasse essa supressão. O tempo parecia maior do que questões que poderiam ser resolvidas com soluções menos drásticas. Nenhuma necessidade deveria ser grande o bastante para autorizar que mexessem nas nossas medidas fundamentais; para permitir que subtraíssem sem remorsos uma fatia das vidas daqueles que partem antes do fim do verão.
Até que, depois de muito me atormentar, veio uma revelação. Nas minhas lembranças, essa foi talvez a primeira grande epifania que tive – dessas que mudam para sempre as bases do mundo inteiro, que transformam o ritmo e o sentido das rodas que movem a locomotiva dos nossos dias. Não sei quantos anos eu tinha, mas sei que passei noites inquietas pensando sobre esse assunto, debatendo-me sobre as horas porque eu já entendia que havia alguma coisa muito mal contada nessa história; alguma peça estava sobrando e não se encaixava nas outras, e o problema do horário de verão talvez fosse a possibilidade de penetrar equações mais complexas. A hora perdida e depois devolvida parecia a denúncia de uma mentira cuja profundidade era maior do que simplesmente a dissimulação dos relógios, que passam a adiantar os dias até voltarem a atrasá-los e regularem-se com a verdadeira medida do tempo. Aos poucos, acho que comecei a me perguntar sobre qual seria essa verdadeira medida, e até onde haveria de fato uma segurança tão clara nas contagens temporais, que são desde sempre seguidas por todos nós, de acordo com as quais os compromissos, as datas e os prazos podem ser regulados. Foi assim que nasceu a minha primeira epifania: as dúvidas iniciais me levaram pela sua correnteza e acabaram desaguando em outras dúvidas maiores, outras dúvidas imensas. As peças de um edifício se desmontaram e revelaram a realidade de base que estava escondida embaixo dele. Entendi enfim que era realmente impossível arrancar qualquer hora de qualquer dia de qualquer vida de quem quer que fosse. Porque compreendi que existe um tempo que não tem nada a ver com os passos dos ponteiros dos relógios; que a passagem dos minutos não define a cadência de uma outra percepção, mais interna e menos controlável por números ou cronômetros, calendários ou agendas. Podem nos tirar ou nos devolver um pedaço de um domingo, mas esse pedaço não vai afetar uma outra camada que subsiste no desenrolar dos dias: ali, tudo se passa mais lentamente e não depende de medidas. Não há horas nem minutos, nem semanas nem meses, mas formas difusas, maleáveis e elásticas, que se modelam de acordo com instâncias impossíveis de serem ajustadas por qualquer régua externa.
As coisas acontecem em níveis – e isso já é uma elaboração atual daquela descoberta da infância. As medidas do tempo, com que costumamos nos relacionar antes de sentir, são só a superfície de uma esfera que guarda dentro de si muitas mais camadas, até chegar em um centro firme e cheio de fogo. Há outros tantos tempos, há percepções de proporções gigantescas; mas que, ao mesmo tempo, são tão sutis que é preciso uma outra qualidade de atenção para poder percebê-las. Esse é um entendimento que me guia até hoje, porque ele nunca deixa de ser importante. Por causa disso, sempre tento transitar pelos diversos níveis possíveis de percepção do tempo, para conhecê-los e também para levar as descobertas que eu faço de uma camada para a outra – como se eu estivesse, dentro de mim mesma, sempre em um elevador, subindo e descendo os andares.
Depois de me dar conta, então, de que o sumiço da hora que acompanha a chegada do verão não torna mais curta a vida de ninguém, e com isso compreender que as vidas de todos nós não têm tamanhos mesuráveis – ou que eles são tão grandes e cheios de aspectos que não cabem em números –, aos poucos desenvolvi também um certo desprezo pelos relógios, pelas datas e cronogramas. Vai ver isso coincide com a entrada na adolescência: o crescente desejo que tive de me rebelar contra tudo aquilo que é padronizado, tudo o que é imposto de fora para dentro, toda a conjuntura previamente organizada. Quis ser contra as certezas que independem dos sentidos e que nos regem à revelia do que queremos ou do que podemos. O barulho do tique-taque se tornou sinônimo da monotonia de um sistema surdo e que tem a voz muito alta – do qual tínhamos que escapar para encontrar novas temporalidades possíveis, mais coloridas, mais lentas e graciosas.
Já não penso desse jeito. Ficando mais velha, adquiri cada vez mais apreço aos calendários, às épocas do ano, aos ciclos que se formam a partir das datas que se repetem e viram marcos, aos aniversários e sua importância ritualística. Na verdade, acho que, mesmo quando eu pregava o ódio aos ponteiros e aos prazos, não deixava simultaneamente de valorizar o cinza nebuloso das seis da tarde, quando o dia dá lugar à noite, nem de elogiar o mês de dezembro e sua doçura estranha de massa de biscoito. Eu não percebia que estava me contradizendo, e talvez realmente nem estivesse; ou ainda não tinha refinado essas contradições o suficiente para entender que é possível protestar contra as medidas temporais tanto quanto amá-las profundamente, porque elas se tornam outra coisa quando concebidas pelas cores da experiência. Foi preciso passar pela recusa aos moldes da superfície do tempo para poder, então, voltar a eles, emergir trazendo tesouros encontrados lá no fundo e que dão brilhos diferentes aos dias, aos bimestres, aos minutos e às tardes.
Mas, ainda assim, mesmo com tudo o que já descobri, até hoje é difícil passar pelo pequeno ritual do início do horário de verão. As explicações e revelações que já vieram não mudaram tanto a melancolia que sinto quando chega o momento do ano em que desaparece essa hora do dia: é uma perda que se faz num ponto anterior, lá embaixo, indiferente às epifanias, e que resiste com força – não quer escutar nenhum conselho, nenhum consolo. Um vazio doído que se abre e que me faz lembrar do tempo, das memórias, que marca com um pequeno trauma o começo do final do ano e aponta para tudo o que também se encerra a partir daqui. Perdemos a hora e perdemos também todas as horas, todos os dias, os anos inteiros que vivemos: são blocos que se completam e que nos são levados embora, que cavam vãos redondos dentro de nós, e nos deixam todos esburacados. Ficamos cheios de coisas faltando, repletos de tempos roubados.
Os anos acabam e acabam e acabam, eu tenho a impressão de que nós existimos sempre para chegar novamente nesses meses de outubro e novembro, dezembro, e constatar mais uma vez que o tempo passou, as coisas aconteceram, sempre diferentes do que imaginávamos; as horas sumiram de uma hora para a outra, nós não cumprimos promessas, não realizamos desejos, conhecemos pessoas, outras foram embora. A monotonia afunda nas noites de domingo, quando a semana está suspensa no ar, e constatamos os longos dias úteis de trabalho que se foram, e preparamos os seguintes, lembrando de vez em quando que ainda não planejamos o que é que faremos no réveillon que se aproxima. São tantas coisas que acontecem ao mesmo tempo: percebo as horas subindo e descendo degraus de quem sou, surgindo e sumindo. Às vezes se afogam, às vezes me afogam, às vezes entendo que ganho o que perco, que tudo isso é muito mais e também muito menos, e não tem importância nenhuma. É da maior importância.
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Isidoro veio antes. Ele me foi oferecido pela moradora do primeiro andar do prédio num dia de Yom Kipur. Era um bebê branquíssimo e levíssimo, com os olhos azuis, vesgos e sujos de remela. A vizinha me contou que na noite anterior ele tinha surgido na garagem e se escondido dentro do motor de um carro, que ela o tinha resgatado mas que não podia ficar com ele porque já cuidava de animais demais – três cachorros e dois gatos em um apartamento pequeno. Enquanto falava e enquanto eu segurava Isidoro nos braços, ela me entregava também a caixinha de areia e a ração, antes que eu tivesse tempo de dizer que não sabia se queria ou não um gato naquele momento. “Vai com Deus!”, ela profetizou e me despachou para o elevador com a oferenda nas mãos.
Cheguei em casa ainda sem ter decidido nada, o bichinho já bem encaixado no meu colo: quando fechei a porta e o soltei na sala, depois de assisti-lo reconhecer, primeiro devagarinho, os móveis da minha casa, e em poucos segundos correr de um lado para o outro até subir no pufe vermelho e rolar com a barriguinha para cima, eu entendi que não tinha mais escolha – e que, mesmo se houvesse, ela já tinha sido feita (e não exatamente por mim). Isidoro tinha virado o meu gato. Ele era muito pequeno, tinha manchas atípicas na cabeça e um rabo marrom escuro que contrastava com seu pelo quase todo muito branco. Ganhou o nome do cigano do filme que eu tinha visto, e rapidamente virou a estrela do apartamento, o centro brilhante para o qual todos os cantos da casa confluíam. Crescia desajeitado, acompanhando com os olhos grandes e cada vez mais estrábicos as coisas que aconteciam à sua volta na casa; arranhava a porta do quarto sempre que eu a fechava e me espiava por todos os lados, sempre com a expressão de quem quer muito entender tudo o que existe e que não dá para entender.
Doralice veio dois anos depois. Isidoro já era um gato bem grande – acho que ele nunca parou de crescer. Adquiriu um olhar mais sereno de adulto, mas sem ter perdido a vesguice que sempre foi a sua grande característica. Ganhou também um porte mais elegante, uma postura de onça ou leopardo enquanto caminha em silêncio pela casa depois de ter comido ou quando se lambe com uma concentração quase extática, mesmo que seja facilmente interrompida por qualquer barulho estranho ou inesperado. Um gato meio assustado que conservou depois de adulto a interrogação funda ao encarar meu rosto – como se quisesse que eu contasse para ele os porquês de todas as coisas desse mundo que compartilhamos. Mas eu nunca tive como responder, e além disso passava muito tempo fora, para além da porta de entrada que é a fronteira que ele nunca transpõe: aos poucos me dei conta de que Isidoro se sentia sozinho. Ele precisava de uma outra companhia; de alguém com quem pudesse correr junto. Doralice demorou a chegar mas, quando vi a sua foto com o olhar misterioso e a cabeça inclinada para o lado, soube de pronto que era ela – e fui até longe para resgatá-la. Era um filhote minúsculo, amorosa e cinzenta, de olhos puxados e atentos a todos os detalhes e a todos os ruídos, mesmo aqueles que não existem ou que existem só para quem presta atenção. A única gata que conheço que gosta de ir buscar uma bolinha lá no fundo do corredor, numa correria alucinada, com as pupilas dilatadas e os bigodes eriçados, para trazê-la pendurada na boca de volta para mim, um predador atravessando a mata densa da floresta do apartamento, sabendo que nada no mundo inteiro é mais importante do que isso.
Isidoro no início não gostou nada da chegada daquela que se tornaria a sua irmã. Foram dias difíceis nos quais ele descobriu que não era o único gato que existia no planeta; teve que aos poucos entender que aquela casa não giraria mais apenas em torno dele, e que teria de compartilhar a centralidade do universo com outro ser menor e mais rápido do que ele. Instalou-se dentro do meu armário e por uns três dias só saiu de lá para comer, com passos lentos e desconfiados. Sempre que cruzava com Doralice, ele a ameaçava fazendo um chiado como eu nunca tinha visto antes, e que assustava muito mais a mim do que a ela. No quarto dia, Isidoro finalmente decidiu abandonar o armário, que já estava coberto por uma camada de pelos brancos sobre todas as roupas, para iniciar a segunda etapa de sua crise existencial: ele se determinou a enfrentar aquela situação e acabar de uma vez por todas com ela. Eu acompanhei sem me manifestar, monitorei de longe os movimentos dos dois, fiz de tudo para me envolver o mínimo possível. Ele queria atacá-la e ela era muito pequena. Isso não a impedia, no entanto, de correr sem medo em direção a ele e atacá-lo de volta, sem a menor noção do próprio tamanho nem da diferença entre os dois. Eles se olhavam com os corpos tensos e alertas, as colunas arqueadas, e ainda não tinham intimidade sequer para travar uma verdadeira briga. Espiavam-se escondidos, traçando cada um a sua própria estratégia, mais ou menos calculada, para surpreender o outro. A princípio, o território era dele – mas ela já dominava os ambientes, já saltava com desenvoltura pela estante e a mesa de jantar, e não havia quem pudesse controlá-la ou impedi-la.
A primeira coisa que aprendi com o encontro entre Isidoro e Doralice é que existe uma fronteira entre brigar e brincar, e que ela pode ser muito mais ampla e cheia de nuances do que eu imaginaria. Quanto mais eles se estranhavam, mais se aproximavam; quanto mais se provocavam, mais pareciam compreender um ao outro. No quinto dia, eu já não sabia dizer se eles estavam se atacando ou se divertindo: a verdade é que estavam simplesmente se conhecendo. Disfarçavam-se, espreitavam-se, perseguiam-se, nunca se machucavam: o que era agressivo ficava cada vez mais carinhoso, numa transição espontânea e muito rápida do medo para o amor.
Ao final daquele tarde, exaustos, enrolaram-se cada um em um extremo do sofá da sala e adormeceram do que parecia ser um mesmo e único sono, que os atraía mais e mais para perto um do outro. A cada vez que eu olhava, a distância entre os dois estava um pouco menor: eu tinha a sensação de que mãos invisíveis os dispunham lentamente lado a lado, enquanto dormiam e sonhavam com os seus pulos de gato. Até que acordaram e se observaram, agora calmos, os olhinhos ainda meio fechados, e afinal se aceitaram depois dos seus rituais importantes, numa paz compartilhada somente por eles dois. Isidoro já lambia a cabecinha de Doralice; ela já o recebia com absoluta devoção. Em cinco dias, eles eram irmãos: donos de tudo o que é meu, muito mais íntimos do que eu mesma de nossa casa e de seus ambientes múltiplos, suas possibilidades incontáveis, experimentando perspectivas e prateleiras, transformando as funções das coisas ao redor, encontrando objetos esquecidos e mostrando um para o outro as constantes novidades.
Chegar de volta em casa e ser recebida por essas duas presencinhas que miam e que correm, olhando de baixo para mim, é uma sensação que nunca vou saber explicar direito – porque não faz parte da ordem das coisas que podem ser ditas. Só os dois sabem do que é que estou falando, justamente porque nunca precisei falar nada para que eles já adivinhem. Isidoro e Doralice também nunca abriram a boca para me dizer palavras que signifiquem coisas para além dos seus miados melódicos. No entanto as conversas entre nós três são sempre muito longas, chegamos juntos a grandes conclusões – mas nada que eu possa contar. Ter dois gatos é ter órgãos a mais no meu próprio corpo: pedaços de mim que nunca foram meus, que agem como querem e segundo critérios que eu não tenho – e à noite se deitam comigo, encaixados nas minhas pernas. Posso passar muitas horas a observá-los interagir, examinar os seus movimentos e rir sozinha dos seus sustos e seus tombos nas perseguições que fazem pela casa atrás de seres invisíveis. São as faces mais claras de uma alma que talvez seja a mesma que a minha, talvez seja outra também: eles me encaram com todas as evidências daquilo que não conheço e que eles tampouco conhecem, mas sabem melhor do que sei; ou não sabem, e estranham como eu.
Agora mesmo, enquanto escrevo, Isidoro entrou no quarto e soltou um miado breve, me olhou sentada aqui diante da escrivaninha, rodeou essa cadeira, deu duas voltas ou três até achar o caminho mais certo para pular no meu colo. Depois que ele se acomodou nas minhas pernas cruzadas, incomodado com os movimentos que faço com as mãos para escrever, Doralice chegou rápida, meio irritadiça, soltando seus gritinhos agudos que, mesmo depois de quase dois anos, ainda parecem de bebê. Ele olhou para ela daqui de cima e ela parou sentada no chão, esquecida do que a motivou a entrar acelerada; fixaram a atenção um no outro, imóveis, concentrados em si mesmos, curiosos para o segundo seguinte, numa expectativa da próxima surpresa que pode vir de todo e qualquer lugar. Até que surgiu um barulho do lado de fora, na rua, que interrompeu essa suspensão do tempo em que eles tinham mergulhado: e Isidoro pulou assustado do meu colo, fazendo voar uma nuvem de pelos brancos na frente do computador, e Doralice sumiu correndo atrás de algum besouro ou mosca que só ela percebeu. Fugiram daqui do escritório e eu só pude ouvir seus embates e suas bagunças necessárias repercutindo pela sala.
Não sei o que é que eles fazem enquanto não estou olhando, não sei o que pensam nem o que conversam quando não estou em casa: nós três moramos juntos mas guardamos segredos muito secretos uns dos outros, e não temos a menor necessidade de compartilhá-los para nos entendermos. Eles também não sabem para onde vou quando fecho a porta, onde é que passo os meus dias, o que é que será que existe no mundo para além daquilo que podem avistar pela janela. Eles não sabem o que devo estar fazendo parada por tanto tempo, sentada no mesmo lugar, e o que podem querer dizer os gestos das minhas mãos ou os sons estranhos que solto pela boca. Ainda assim, ou talvez por causa dessas tantas coisas que não sabemos e não podemos dizer uns para os outros, dessas tantas vidas que acontecem para cada um dos três, nós vivemos em harmonia nesse nosso apartamento, e eu só me sinto completa quando estou junto com eles, quando chego nessa casa e meu corpo se espreguiça, agora seguro de estar inteiro – com cada coisa, cada membro, cada braço e cada pata, cada focinho e bigode em seu lugar.
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