Iluminuras, 2016
semifinalista do prêmio oceanos 2017
O porto é o que resta da partida. Ele está aqui, mas de modo particular. É a plataforma a partir da qual se vislumbra o outro lado, o outro mundo. Não se trata de lamentar a partida ou de relembrar o que se foi, o que se deixa. Mas de constatar o tempo e o espaço da experiência, a percepção de que a memória só se revela plenamente quando exposta ao esquecimento. Trata-se de datar a travessia, o interregno. — O outro mundo está sempre perdido. — O outro mundo está aqui. Ele está na ambivalência de uma segunda pessoa textual, de uma voz que diz, mas que também é convocada (“Venha ver”), logo de início, para algo que já não se mostra. Aquilo que procuramos nos encontra: o outro mundo vem a este como resto ou detrito de outra coisa.
A escrita de o porto é inquieta, mas delicada, sempre à beira da perda, mas nunca descuidada dos acontecimentos. Os textos se completam sem a preocupação em afirmar sua autonomia ou em cumprir um programa, narrativo ou reflexivo, assumindo integralmente a ambivalência de uma escrita aventurosa que se alimenta daquilo que resta, que se nutre do embate com o acabamento. “Toda luta é contra as formas.” Sua dicção está mais próxima do sussurro, que dispensa a escuta nítida.

Na bela reflexão sobre o tempo e a memória (a partir da epígrafe de Pascal Quignard: “o que resta daquilo que passa é como o outro mundo do mundo”), o tempo reaparece na antiga metáfora da água corrente, da água que se forma das gotas e que atinge um imenso (mas nunca inerte) mar. Antes cristalizadas, a expectativa e a memória se movimentam, se dissolvem. Tudo “desmancha devagar para se tornar passado”.

O atraso é um modo do tempo. O tempo que Leda Cartum afirma ter levado para escrever este texto, a necessidade da travessia em direção ao livro, é o tempo necessário para que a gota da experiência (que dispensa a memória) se aproxime da gota da escrita (miniatura do passado, “souvenirs”). A vida, de fato, é um puro depois, ao qual a escrita procura dar algum empuxo, salvando do amálgama seus diferentes tempos, que se atraem como gotas d’água.

O passado como tal, o outrora, aquele “sem precedentes” embarcou numa nave e transformou-se em tempo. Ele reaparece, na capa de o porto, na condição de um velho navio.

Marcos Siscar
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Esse é o cartão postal que o meu avô, David Kartun, trouxe quando chegou ao Brasil em dezembro de 1928 vindo da Letônia, país para onde ele nunca mais voltou. Esse é o navio francês Belle Isle no qual ele viajou com 17 anos, onde ele se apaixonou por uma dançarina espanhola, e que o deixou no porto do Rio de Janeiro – foi de lá que ele veio para São Paulo e se instalou numa pensão próxima à Estação da Luz, bem perto de onde eu moro hoje em dia.
Não cheguei a conhecer o meu avô: é uma das ausências que me constituem. E esse cartão postal de um navio que atravessa o Oceano Atlântico se tornou a capa do meu livro O Porto – um livro que é feito de tempos, de esperas, de viagens e de ausências.
Neste texto, conto um pouco mais do processo longo de escrita desse livro.

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Onde o mar habita
Revista Pessoa
Na memória: as águas
Ruído Manifesto
O porto, de Leda Cartum
Folha de S.Paulo