Todas as famílias infelizes se parecem
Revista Quatro Cinco Um
Tolstói & Tolstaia, Lev Tolstói e Sófia Tolstaia
Trad. Irineu Franco Perpetuo
Editora Carambaia, 2022
Em certa passagem de Anna Kariênina, um grupo de crianças sai para colher cogumelos na orla da floresta, acompanhado de Serguei Ivánovitch e de Várienka. Ele é viúvo e muito mais velho do que ela, mas é evidente para os dois que estão apaixonados um pelo outro. Ela espera o momento em que ele enfim fará a proposta. Tudo está perfeitamente arranjado para isso: Serguei Ivánovitch já provou para si mesmo que ela é a mulher ideal, Várienka está convencida de que o ama; as crianças brincam ao longe, faz-se um silêncio denso entre os dois — “agora ou nunca, era preciso explicar-se”. Mas eles caminham, olham-se, sabem de tudo isso e continuam calados. A pergunta que sai da boca dela, contra a sua vontade, é sobre cogumelos; ele, também contra a vontade, responde sobre cogumelos. A hora passa e eles perdem o momento: “Compreenderam que o assunto estava encerrado, que aquilo que deveria ser dito não o seria”. O pedido não é feito, os pretendentes não chegam a ficar noivos.
Sempre achei essa passagem especialmente melancólica: simplesmente por vergonha, excesso de zelo ou etiqueta, um casal que tem tudo para se unir acaba por nunca se casar. Mas, depois de ler as três novelas reunidas em Tolstói e Tolstaia (Carambaia), lembrei desse trecho e passei a pensá-lo de outro jeito. Ele pode ser lido também com uma sensação de alívio: se o casamento não se consuma, fica a promessa de uma felicidade possível — que, como não se realiza, também não chega a murchar.
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A evolução das metáforas
Suplemento Pernambuco
Fundamentos de "A origem das espécies", Charles Darwin – Trad. e org. Lara Pimentel Anastácio
Editora Unesp, 2022
O escritor é alguém que, mais do que qualquer outra pessoa, tem dificuldade para escrever – pelo menos é assim que o define Thomas Mann, numa dessas frases que são tão citadas que é difícil determinar sua origem. Charles Darwin (1809-1882) morreu antes dessa frase ser formulada, mas provavelmente estaria muito de acordo com ela: o autor de um livro que vendeu em um dia suas 1250 cópias e foi traduzido para 11 línguas ainda no século XIX admite, em sua autobiografia, que sempre teve dificuldade para se expressar com clareza e concisão. E foi por causa dessa dificuldade, como ele conta, que descobriu os melhores métodos para escrever: no lugar de pensar nas ideias antes de colocá-las no papel, ele entendeu que economizaria tempo ao rabiscar páginas inteiras, com o que chamou de “um estilo pavoroso”, em velocidade máxima, abreviando palavras, e só depois voltar, reler e fazer uma correção mais longa e atenta. “Muitas vezes, as frases assim rabiscadas são melhores do que as que eu conseguiria redigir deliberadamente.”
Entre essa velocidade máxima com que Darwin rabiscava palavras pela metade e a sua demora de quase 20 anos para publicar A origem das espécies, aí está seu verdadeiro trabalho de escritor, esse homem que sofre para se expressar. Podemos acompanhar um pouco desses dois tempos darwinianos – o rápido e pavoroso, de um lado, e o lento e minucioso, de outro – no livro Fundamentos de A origem das espécies, que saiu recentemente pela Editora Unesp, com tradução e introdução de Lara Pimentel Anastacio. Nele encontramos os dois ensaios, de 1842 e 1844, nos quais estão os alicerces subterrâneos para o que se tornaria, só em 1859, a maior obra de Darwin.
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Um livro é um livro é um livro
Quatro Cinco Um
O mundo é redondo, Gertrude Stein – Trad. Luci Colin e Dirce Waltrick do Amarante
Editora Iluminuras, 2020
Em 1939, quando foi publicada a primeira edição do livro O mundo é redondo, de Gertrude Stein, a editora Young Scott Books advertiu: se os leitores tiverem dificuldade para acompanhar o texto, devem lê-lo mais rapidamente; e, se ainda assim tiverem dificuldade, devem lê-lo mais rapidamente ainda. Eu experimentei e posso dizer que é mesmo verdade: ler mais rapidamente, no caso desse livro, é um jeito de entendê-lo melhor. Talvez porque esse seja um texto que corre na mesma velocidade com que os pensamentos correm dentro da cabeça — principalmente quando é a cabeça de quem costuma pensar sobre tudo.
Se você ficou na dúvida, experimente também: “Uma vez o mundo era redondo e você podia dar voltas e voltas ao redor dele. Por todo lado havia um lado e por todo lado lá havia homens mulheres crianças cachorros vacas porcos selvagens coelhinhos lagartos e animais. Era assim que era. E todo mundo cachorros gatos ovelhas coelhos e lagartos e crianças todos queriam contar para todo mundo tudo sobre essas coisas e eles queriam contar tudo sobre eles mesmos. E então havia a Rosa”.
ilustrações de Clement Hurd
ilustrações de Clement Hurd
para a primeira edição do livro
para a primeira edição do livro
de 1939
de 1939
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Leitor é cúmplice de um futuro terrível em livro que narra férias de verão que antecedem o Holocausto
Folha de S. Paulo
Meu pai, minha mãe, Aharon Appelfeld – Trad. Luis S. Krausz
Editora Carambaia, 2019
Também por ter perdido as suas línguas de origem, esse é um autor que escreve com um sotaque eternamente estrangeiro —como se o próprio texto em hebraico já fosse a tradução de uma língua e de um tempo que não existem mais. Ele volta para quando os boatos corriam na beira do rio, entre judeus que não imaginavam o que seria a guerra que viria.
Para uma criança, esses “rumores e temores” não significavam muito além de uma ameaça abstrata e assustadora. Mas, nas lembranças antigas, ainda mais quando separadas do presente por uma ruptura como essa, os adultos também soam como crianças em suas afirmações categóricas, sua ignorância sobre o ponto em que se encontram no tempo.
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Verdades vestidas de mentira
Quatro Cinco Um
Contos maravilhosos infantis e domésticos (1812-1815)
Grimm, Jacob & Grimm, Wilhelm – Editora 34
Vidas de Esopo — O Romance de Esopo em traduções e ensaios
Editora Humanitas
A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine
Editora Unesp
O que essas centenas de historietas têm em comum, além do fato de se passarem no “tempo da áurea”, quando “também os demais viventes/ voz articulada possuíam”, como diz Bábrio, é a forma particular que elas encontram para dizer uma verdade: “Fábula (mythos) é uma fala (logos) ficcional que retrata uma verdade”, diz Teón de Alexandria. Modismo na Grécia do século 5 a.C., as fábulas funcionavam como um recurso dos oradores para cativar seu público — para que eles pudessem dizer o que queriam sem ofender nem implicar diretamente ninguém. Porque parte do trabalho retórico de convencimento é encontrar roupas novas para fantasiar coisas velhas: não necessariamente mentir, mas revestir com cores diferentes as verdades com as quais ninguém mais se importa, ou que ninguém mais vê. Um trabalhador esforçado, assim, ganha a roupagem de formiga; o bon vivant, a de cigarra.
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Abbas Kiarostami nos empresta outros olhos em seu livro de poesia
Folha de S.Paulo
Nuvens de algodão, Abbas Kiarostami – Trad. Pedro Fonseca
Editora Ayinê, 2018
“Em persa temos um ditado que afirma, quando alguém olha algo com verdadeira intensidade: ‘Tinha dois olhos e pediu mais dois emprestados’. Estes dois olhos tomados de empréstimo são aquilo que quero capturar” —é o que uma vez escreveu o iraniano Abbas Kiarostami sobre a própria obra.
Todo o seu trabalho, seja como cineasta, fotógrafo ou poeta, é atravessado pelo desejo de captar esses olhos secretos: aguçar a percepção, enxergar na imagem o que está antes, depois ou atrás dela.
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Em 'Benito Cereno', Herman Melville revela o que não queremos ver
Folha de S.Paulo
Benito Cereno, Herman Melville – Trad. Bruno Gambarotto
Editora Grua, 2018

“Benito Cereno” é um livro de muitos níveis. Faz sentido, assim, que essa seja uma história que se passa no meio do mar: se o que se revela na superfície esconde outras camadas, um bom navegante está atento e observa os sinais aparentemente insignificantes. 
Quem comanda um navio deve saber interpretar aquilo que indica mudanças na direção do vento ou tempestades se aproximando.
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Edição de contos aproxima o leitor dos mistérios do assombro
Folha de S.Paulo
Contos de assombro, vários autores
Editora Carambaia, 2018
Tudo do que a gente duvida da existência acaba por ganhar mais formas de existir. O diabo, por exemplo, pode surgir por aí cheio de disfarces: travestido no corpo de um homem respeitável; muito alto, com olhos admiráveis; na aparência de um lenhador, no meio do pântano; ou então como um ser repugnante, entediado e de ombros peludos.
Acontece até mesmo de o diabo não ser chamado por seus nomes mais conhecidos, nem ser tão maligno quanto imaginamos: um "Espírito da Vida" que aparece para mostrar o que acontece após a morte.
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'A Balada do Cálamo' é uma espécie de autobiografia em construção
Folha de S.Paulo
A Balada do Cálamo, Atiq Rahimi – Trad. Leila de Aguiar Costa
Estação Liberdade, 2018

Conta-se que há muito tempo, na Turquia, um homem anunciou que venderia o Livro da Sabedoria por cem peças de ouro, e que alguns achariam barato. Ao que Yunus Emré, conhecido mestre sufi, respondeu: "E eu darei a chave para entendê-lo, e quase ninguém a aceitará, mesmo de graça".
Essa pequena história não está no livro "A Balada do Cálamo", do afegão exilado na França Atiq Rahimi. Mas o autor, em suas referências que transitam da antiga poesia persa a escritores europeus contemporâneos, persegue justamente essa chave do conhecimento profundo —que, até se for oferecida de graça, sabemos ser uma das coisas mais difíceis de se localizar.
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Pequenino alvoroço
Quatro Cinco Um
O inferno é verde, Leslie Kaplan – Trad. Zéfere
Luna Parque, 2018
Hotel Península Fernandes. Sempre que Manuel Bandeira via esse nome escrito numa tabuleta “sentia não sei que pequenino alvoroço”. Seu primo tomou a iniciativa de perguntar ao proprietário o motivo dessa estranha escolha. O homem, um português “sem nenhuma fumaça de literatura”, respondeu: “Muito simples. Fernandes porque é meu nome, e P’nínsula porque é bonito!”. Bandeira, que conta essa anedota para falar da força inapreendida da poesia, encontrou uma explicação para o nome do hotel, mas não para a emoção que sentia sempre que via a inscrição: essa permaneceu misteriosa. 
“O inferno é verde.” A franco-americana Leslie Kaplan inicia os versos de seu livro com a chegada ao Recife e essa frase que ela viu em um muro. O que o grafite despertou na poeta é da ordem do pequenino alvoroço descrito por Bandeira: com essa combinação de palavras, uma maquininha adormecida é ativada e começa a girar para criar um poema.